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HISTORIADOR MAURO IASI: O presidente dos EUA, Barack Obama, disse que se solidariza à França, pois era uma de suas mais antigas aliadas e que os atentados em Paris foram contra “as ideias e valores que constituem a base de nossas sociedades”, enfim, um ataque “contra a humanidade”. O que nos chama a atenção é um paradoxo reiterado em situações como essa, isto é, se o ataque foi contra a humanidade, quem os realizou não faz parte da humanidade?

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Paris, terror e humanidade

Mauro Iasi Paris humanidade terror blog da boitempo[Tricolor francês sobre imagem de Barack Obama durante pronunciamento sobre os atentados de 13.11.2015]
Por Mauro Luis Iasi.
“Quando nascer o dia
e limparmos da varanda
os morcegos mortos
teremos que ter todo o cuidado
para não estar entre eles”.
(Mauro Iasi. Sobre o Trabalho da Civilização)
Devemos iniciar com a solidariedade e respeito ao sofrimento das vítimas e aos familiares daqueles que sofreram os ataques coordenados ocorridos em Paris. Nossa intenção de refletir analiticamente sobre eventos como estes não pode nos deixar indiferentes à dor daqueles que são atingidos, feridos ou perdem sua vida como peças de um jogo que nem sempre, ou quase nunca, compreendem de fato.
O presidente dos EUA, Barack Obama, disse em sua mensagem que se solidariza à França, pois era uma de suas mais antigas aliadas e que os atentados foram contra “as ideias e valores que constituem a base de nossas sociedades”, enfim, um ataque “contra a humanidade”. Um site especializado em abaixo assinados, certamente com a melhor das intenções, expressa com estas palavras sua indignação diante dos atentados:
“Este foi mais do que um ato monstruoso de ódio. Os ataques tiveram a intenção de desestabilizar a base de nossas sociedades. Foram um ataque à nossa humanidade compartilhada, tolerância, liberdade e respeito, valores que simbolizam o mundo pelo qual nosso movimento tem lutado.
O que nos chama a atenção é um paradoxo reiterado em situações como essa, isto é, se o ataque foi contra a humanidade, quem os realizou não faz parte da humanidade? Nesta direção, o segundo comentário é mais preciso que o primeiro, uma vez que deixa claro que se trata de “nossa humanidade”. O adversário, o inimigo, o terrorista, torna-se um outro externo ao campo da humanidade, ou em outros termos preferidos, por exemplo, por Huntington, são de outra civilização.
Segundo este senhor, não haveria uma compreensão unânime sobre quantas civilizações comporiam o mundo, oscilando entre 7 e 23, mas se conformaria um “consenso razoável, acerca da afirmação sobre a existência de doze civilizações principais, entre elas sete que já encontraram seu fim e cinco que persistem (chinesa, japonesa, indiana, islâmica e ocidental). O problema, ainda segundo Huntington, é que a civilização ocidental, pelo seu sucesso econômico e superioridade moral, está cercada pela migração que se impõe pelo número e insidiosamente iria minando os valores, a língua e os padrões de vida da sociedade ocidental que entra em declínio e tem o direito de se defender. Para ele o quadro conjuntural da política mundial configura o que chama de uma “guerra de civilizações”. Diz Huntington:
“O crescimento natural da população dos Estados Unidos é baixo e praticamente zero na Europa. Os migrantes têm altas taxas de fertilidade e por isso respondem pela maior parte do futuro crescimento populacional nas sociedades ocidentais. Em consequência, os ocidentais cada vez mais receiam “estarem atualmente sendo invadidos, não por exércitos e tanques, mas por migrantes que falam outros idiomas, adoram outros deuses, pertencem a outras culturas e, temem eles, irão tomar seus empregos, ocupar suas terras, viver à custa do sistema de previdência social e ameaçar seu estilo de vida”.
(HUNTINGTON, S. P. O Choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial, Rio de Janeiro: Objetiva, 1997, p. 249).
Apesar de alguns expressarem tais ideias conservadoras orgulhosos de seu reacionarismo, os ideólogos da ordem burguesa mundial recepcionam tais afirmações com inequívoco desconforto. Não pelo conteúdo que carregam e que fundamenta ações práticas no campo do ordenamento jurídico e geopolítico, mas porque revelam sem mediações a constatação que se trata de uma guerra contra “outras civilizações”, seus valores e padrões de existência. O trabalho da ideologia é encobrir esta constatação brutal , atenuando-a, e para tanto não se trataria de uma luta entre “civilizações”, mas da defesa “da civilização” e dos valores consensuais que caracterizam a “humanidade” contra minorias que ao atacar estes valores e esta civilização colocam-se fora da condição civilizada e humana (podendo, por isso mesmo, ser tratados como se não fossem humanos).
Toda a fala de Francois Hollande vai nesta direção, atacaram “nossa forma de vida”, nossos “valores”, e ao proceder desta forma, atacam “toda a humanidade”. Os próprios sujeitos dos atentados, caso se confirme o que hoje parece ser a maior probabilidade, isto é, que tenham partido do Estado Islâmico (ISIS), reforçam esta cortina ideológica ao afirmar em seu comunicado que atacaram símbolos de uma forma de vida “degradada e decadente”, marcada pela frivolidade e o pecado, arrogando a si mesmo a tarefa de empunhar a espada contra os “infiéis.
Nesta dimensão o discurso ideológico se presta a uma outra finalidade, reduzir as ações à dimensão do ódio irracional, como tal, não se exige nenhum esforço de compreensão mais profundo de causas e determinações, é apenas a irracionalidade das paixões, do fundamentalismo, da fé cega, da intolerância.
Caso se confirme a autoria do estado Islâmico, ou de subgrupos a ele associados, estas determinações precisam mesmo ser ocultadas para o bem da ordem, na França e na mítica civilização ocidental. Os que perpetraram os ataques, segundo testemunhas, gritaram que aquilo era uma vingança contra o que aconteceu no Iraque e na Síria. Mas, contra o que exatamente que aconteceu no Iraque e na Síria?
É certo que aqueles que aproveitavam de uma noite de sexta feira na Cidade Luz, indo à uma partida de futebol, jantando em um elegante bistrô ou indo a uma casa de espetáculo ver uma banca de rock, reagiriam, com certa razão, que nada tinham com as ações militares naqueles países distantes.
Aqui é necessário que adentremos um pouco mais na forma e conteúdo daquilo que se chama de “terrorismo”. O terrorismo é um instrumento de luta que se costuma usar, fundamentalmente, para tornar pública uma guerra que é secreta, ou que se dá abaixo da linha de visibilidade da consciência da uma boa parte da sociedade. Foi assim que foi utilizada pelos israelenses contra o domínio britânico, ou pelos argelinos da FLN contra o colonialismo francês, ou se quisermos voltar mais no tempo, pelos colonos norte-americanos contra o domínio britânico com ajuda dos franceses.
Os marxistas sempre tiveram reticências em relação ao terrorismo, essencialmente, por dois motivos: ele é um instrumento indiscriminado, isto é, não ataca diretamente o adversário, preparado para uma guerra, mas a população; segundo, pelo fato de que o marxismo compreende a revolução como um processo de transformação massivo que não prescinde da ação de vanguardas, mas que no entanto nunca pode se restringir à iniciativa de minorias. Nesta segunda acepção, mesmo as ações militares, muitas vezes decisivas, se subordinam à ação política. Podemos ver estes princípios claramente expressos nas criticas de Marx e Engels à Blanqui, em Lenin e Trotski no balanço das propostas do grupo “Terra e Liberdade” e do terrorismo na Rússia, em Fidel quando afirmava que a guerrilha só poderia ser o pequeno motor que faria mover o grande motor que era a ação de massas, e, de forma ainda mais evidente, mesmo na Revolução Vietnamita que se desdobrou para uma guerra direta contra os EUA.
A direita sempre usou do terrorismo de forma mais intensa sem muitas reticências. Os exemplos se multiplicam, desde a Operação Condor na America Latina, os Corpos Francos na Alemanha de 1918, as hordas nazi-fascistas que abriram caminho para Mussolini e Hitler, utilizaram largamente de ações terroristas, mas talvez o exemplo mais didático seja do secretário de Estado dos EUA, o senhor Mac Namara, que aconselhou os militares americanos que atacavam o Japão a usarem bombas incendiárias no lugar das convencionais, pois os incêndios, destruindo se alastrando pelas casas de madeira, tinham um potencial mais eficiente quanto à taxa de mortalidade.
No caso presente, as coisas são muito diversas. A guerra em si da qual se trata não é, nem de perto, secreta. Ela é pública e visível, no entanto as causas, interesses e acordos que estão por trás desta visibilidade, não são nem públicos, nem visíveis. O grupo em questão surge na desintegração do Iraque fruto da intervenção militar norte-americana apoiada por seus aliados, entre os quais a França, e sempre contou com a simpatia ou anuência do imperialismo. Trata-se de uma estratégia muito antiga e largamente aplicada na política imperialista no oriente médio, baseado no velho adágio romano – dividir para governar. O imperialismo aprendeu, inclusive por amargas experiências, que não convêm apoiar uma única força para desestabilizar um regime ou um país, sendo o melhor caminho o de apoiar diversas facções, dividi-las e se beneficiar de sua futura luta para que caiam todas sob sua dependência.
Desta forma os EUA, para criar um contraponto à revolução iraniana na região e desestabilizar um governo com certa independência, financiou, armou e bancou a subida ao poder de Saddam Houssein no Iraque, da mesma forma que armou, treinou e respaldou logisticamente Osama Bin Laden para intervir na guerra civil do Afeganistão. Sabemos o que ocorreu com estes senhores. Os fatos comprovam de forma inequívoca que os EUA e seus aliados financiaram, armaram, treinaram e apoiaram logisticamente o Estado Islâmico, assim como outros grupos mercenários e alguns rebeldes, com a finalidade evidente de desestabilizar o governo de Bashar al-Assad na Síria, assim como operaram na destruição da Líbia.
Os EUA, a França, a Alemanha e outras potências não fizeram isso na defesa de valores sagrados da sociedade ocidental, pelo menos não aqueles que hoje tem de ser colocados em evidência pelo discurso ideológico, isto é, na defesa da igualdade, liberdade e fraternidade, para garantir uma sociedade fundada na “tolerância e no respeito”. São outros valores os que aqui são centrais: os valores monetários e financeiros, os valores do petróleo e do gás, os valores como substância que precisa se impulsionar constantemente à autovalorização pela exploração do trabalho. A garantia desses “reais valores fundamentais” colidiu diretamente com os outros valores abstratos que dizem defender.
Independente do juízo que façamos dos regimes políticos em questão (no Iraque, na Líbia ou na Síria), as pessoas que foram atingidas como peças do jogo do capital imperialista mundial e da geopolítica do pós-guerra fria, também iam a restaurantes, assistiam partidas de futebol, viam espetáculos musicais. É um tanto quanto difícil manter um padrão de vida numa vila ou cidade destruída pelas bombas da coalisão que atacou a Síria, ou seus mercenários armados e financiados pelos Estados ditos ocidentais. As pessoas das cidades destruídas empreendem uma dura peregrinação para sobreviver sob o terror da ocupação do Estado Islâmico, que autorizou o estupro como direito legítimo, por exemplo, ou o desespero da fuga que os leva ao mar e a indiferença das fronteiras fechadas. Até agosto de 2015 a estimativa é que haviam morrido mais de 240 mil pessoas na Síria, entre elas, 12 mil crianças.
Quando Žižek analisava os atentados de 11 de setembro de 2001 nos EUA, dizia que a verdade mais dramática que os norte-americanos perceberam com os ataques é que o mundo não gostava deles como eles próprios imaginavam, que eles não eram os heróis da liberdade do mundo e garantia da democracia planetária, mas que parte da humanidade os via como inimigos e algozes. (Ver:Bem-vindo ao deserto do real: cinco ensaios sobre o 11 de Setembro e datas relacionadas N.E.).
De certa forma é o que se vê hoje nos ataques em solo francês. Por que alguém atacaria a terra da igualdade, da liberdade e da fraternidade, das artes e da cultura, de vinhos e queijos, da culinária refinada servida em porções minúsculas? Quando a Constituição francesa redigida após a Revolução de 1789 declara os princípios da igualdade e da liberdade (a fraternidade foi quase que imediatamente esquecida), os franceses “esquecem” que havia escravidão objetiva em suas colônias (como no Haiti, por exemplo) que ainda não tinha sido abolida. Esquecem também como os direitos “universais” não se estendiam aos trabalhadores, proibidos de se associar em defesa de seus salários ou participar das eleições em sua Nova República hierarquizadas pelo voto censitário. Quer dizer, sempre alguém ficou de fora do campo dos sagrados valores da “humanidade”. Vinte nações africanas conseguiram romper com o colonialismo francês somente na segunda metade do século XX.
Hoje o problema não é mais apenas o mundo lá fora cujo papel é ser saqueado para garantir a civilização burguesa. A contradição, já há algum tempo, migrou para dentro das ilhas de prosperidade do capital, na força de trabalho barata e precarizada, nos serviçais, na superpopulação relativa. Ao que parece, caso se confirmem os fatos, muitos dos sujeitos dos atentados não são os imigrantes cuja estigmatização servirá para o endurecimento das políticas xenófobas de fechamento das fronteiras da Comunidade Européia, mas de filhos do próprio solo francês nascidos na velha Europa, e que não se veem como parte desta civilização que os despreza cotidianamente.
Tanto o mar de refugiados, como os ataques são a volta do bumerangue da política externa francesa. Mas há ainda um ingrediente adicional desta crise. A própria Europa está cindida internamente. (Ver: “O bumerangue de Foucault: o novo urbanismo militar”, de Stephen Graham, em Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios de sua superação. N. E.).
O drama que vivemos não se resolverá na defesa abstrata da humanidade contra aqueles que a atacam, uma vez que o que os olhos “ocidentais” não conseguem ver no espelho é que fazem parte da humanidade tanto as vitimas dos ataques quanto aqueles que os praticaram. Uma humanidade cindida, fragmentada por interesses que beneficiam uma ridiculamente pequena parcela da população, protegida em seus bunkers na forma de poderosos Estados militarizados, condenando os demais a comprovar dramaticamente sua condição de simples mortais.
Nem o Estado francês e seu presidente conservador, tampouco os EUA e seu presidente eleito como um democrata, ou os que empunharam armas e bombas em Paris, parecem representar de fato a combalida humanidade como um todo. Todos são parte dela. Parte de uma forma histórica que a humanidade assumiu e precisa ser superada. Precisamos urgentemente saber ver esse fenômeno como um alerta. Ele é a face grotesca que se reflete em nosso espelho, e que dói tanto olhar de frente.
***
Para uma análise detida da evolução da contradição entre discurso ideológico e prática política da potência imperial estadunidense, recomendamos a leitura do livro A política externa norte-americana e seus teóricos, de Perry Anderson, que ensaia uma interpretação da trajetória imperialista dos EUA desde o final da Segunda Guerra Mundial à atualidade em um único arco temporal que vai da guerra contra o México à guerra contra o Terror.
***
MAURO IASI é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM, do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro. É autor do livro “O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência” (Boitempo, 2002)
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JUACY DA SILVA: Joe Biden, esperança e reconstrução

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BIDEN, ESPERANÇA E RECONSTRUÇÃO!

JUACY DA SILVA

Nesta quarta feira, 20 de Janeiro de 2021, finalmente, tomaram posse o 46º presidente eleito Joe Biden e sua Vice Kamal Harris, pondo fim a um periodo tumultuado da vida politica e das relacoes sociais nos EUA, liderado pelo controvertido Donald Trump, um ou Talvez o maior expoente da direita e extrema direita tanto nos EUA quanto ao redor do mundo.

Quando de sua vitória nas primárias do Partido Democrata e homologação de sua candidatura a Presidente, Biden construiu uma Plataforma, unindo praticamente as diversas propostas de outros candidatos e candidatas, de todos os matizes filosóficos e ideológicos do Partido Democrata, possibilitando, assim que seu Partido, apesar de uma acirrada disputa interna, durante meses em que ocorreram as “primárias”, continuasse unido com um único propósito, derrotar Trump que buscava a reeleição e recolocar um presidente democrat ana Casa Branca, o que acabou acontecendo.

O seu slogam tanto nas primárias quanto após ser escolhido candidato do Partido Democrata bem representa as idéias, valores e propósitos que o levaram a obter a maior vitória tanto em termos de votos populares, mais de 81,2 milhões de sufrágios, quanto no Colégio Eleitoral, 306 votos, bem mais do que o mínimo necessário para homologar sua vitória rumo a Casa Branca, que são 270 sufrágios naquele colegiado.

O seu slogan trazia uma mensagem de fé, de esperança e confiança em relação ao future, ao estabelecer, de forma simples, o que a maioria da população norte americana desajava e deseja: Reconstruir melhor o país e contribuir para um mundo melhor, em ingles “Build back better”.

A idéia é reconstruir um país, não apenas em suas estruturas físicas e econômicas, mas principalmente em suas relações políticas, sociais, humanas e institucionais. Todos sabemos que, históricamente, os EUA, desde a Guerra Civil que durou de 12 Abril de 1861 até 09 de Abril de 1865, tendo deixado um saldo de 620 mil mortos (algumas estimativas de estudos mais recentes indicam que as mortes podem ser bem superiores, entre 850 mil e 1,2 milhão de pessoas que perderam a vida em uma das guerras mais fratricidas que o mundo ja assistiu) e em torno de 476 mil ou mais feridos. Estima-se que entre mortos, feridos e prisioneiros a Guerra civil americana afetou diretamente próximo a 1,8 milhões de pessoas.

Considerando que a população dos EUA em 1.860 era de apenas 31,4 milhões de habitantes aquela Guerra afetou diretamente 5,7% da população daquele país. Apenas para efeito comparativo, em 2020 a população dos EUA era de 331 milhões de habitantes, uma Guerra como a que ocorreu entre 11 estados do Sul que pretendiam separar-se da União e constituir em um país independente, baseado no racismo estrutural e na escravidão, isto signifca que uma Guerra com aquela afetaria hoje nada menos do que 18,9 milhões de pessoas, número superior do que a soma de todas as perdas americanas em todas as guerras em que participou ao longo de mais de um século e meio desde então.

Com certeza, boa parte dos conflitos internos, do racismo estrutural, da violência institucional, social e politica e da pobreza que ainda persistem nos EUA até os dias de hoje, em que os últimos acontecimentos que culminaram com a invasão do Congresso americano há poucos dias, por extremistas de direita e de extrema direita, instigados por um discurso falso e de ódio de Trump, insistindo que venceu as eleições, quando o Congresso estava iniciando a sessão conjunta para conferir os votos do Colégio Eleitoral e proclamar, como ato final, a vitória de Joe Bidem e Kamala Harris como os próximos presidente e vice-presidente dos EUA, tem sua origem, não apenas no radicalismo politico e ideológico de Trump e de seus seguidores de direita e extrerma direita, mas com certeza no divisionismo e violência antes, durante e muitos anos após o término da Guerra civil, há mais de um século e meio, incluindo o assassinato de A. Lincoln em pleno exercício da Presidência.

Parece uma ironia da história, quando da Guerra civil os 11 Estados do Sul eram “comandados”, governados pelo Partido Democrata e os Estados do Norte, a União pelos republicanos, cujo expoente máximo era exatamente A. Lincoln.

Basta um exemplo de como a divisão do Congresso persiste ao longo de séculos. Em 08/06/1868, tres anos após o assassinato de A. Lincoln, o Senado dos EUA aprovou a emenda 14 `a Constituição Federal, com 33 votos a favor e 11 contra, sendo que todos os senadores democratas voltaram contra e todos os republicanos voltaram a favor daquela emenda, que impedia que Estados pudesssem legislar estabelecendo medidas que atentassem contra a vida, a liberdade e os direitos civis dos americanos natos ou naturalizados residindo em qualquer estado americano.

É interessante notar como o racismo estrutural permeia a politica americana. O democrata, vice presidente da rebeliao sulista (confederados) Alexander A. Stepens, da Georgia, em 1861, assim declarava: “ Nosso governo (dos confederados, democratas) baseia-se na grande verdade de que o negro não é igual ao homem branco (social, cultural, institucional e politicamente) ou seja, para os escravocratas de entao e os racistas da atualidade, o negro, afrodescendente não pode te ros mesmos direitos, como aconteceu e ainda acontece, mesmo após mais de século e meio da abolição da escravidão. Talvez ai esteja uma das origens do racismo estrutural que ainda hoje está presesnte nos EUA.

O periodo da reconstrução do país de 1863 até 1877, dizimado pela Guerra Civil, foi um dos períodos mais significativos da história americana, assemelhando-se muito com o que aconteceu durante final dos anos 50 e a década de 60, quando das grandes marchas, lideradas por Martin Luther King contra o racismo e pelas liberdades e direitos dos afro-descendentes, novamente acessas no decorrer do governo Trump e que contribuiram diretamente para a eleição de Biden/Harris, esta a primeira mulher de origem Indiana e negra a ocupar o segundo posto mais importante da politica americana, dando, como alguns analistas assim pensam, continuidade das politicas sociais e de resgate dos direitos humanos implementadas pelo Governo Obama, o primeiro negro eleito presidente dos EUA.

Leia Também:  JEAN WYLLYS: A lei não pode obrigar ninguém a “gostar” de gays, lésbicas, negros, judeus, nordestinos, travestis, imigrantes ou cristãos. E ninguém propõe que essa obrigação exista. Pode-se gostar ou não gostar de quem quiser na sua intimidade. Mas não se pode injuriar, ofender, agredir, exercer violência, privar de direitos. É disso que se trata.

Entre 1863 e 1884, por seis mandatos consecutivos, o Partido Republicano dominou a politica dos EUA e ocupou ininterruptmente a Casa Branca, solidifidando-se como um partido mais aberto `as mudanças, enquanto os democratas continuavam arraigados ao conservadorismo oriundo do periodo escravagista e dominavam os estados do sul.

Nas últimas decadas o Partido Republicano tem hegemonia em praticamente todos os estados do Sul e do meio Oeste, enquanto os Democratas são maioria em diversas estados do leste, noroeste e oeste dos EUA. Olhando o mapa dos EUA em cores, o vermelho representa os republicanos e azul os democratas, pode-se perceber facilmente esta divisão.

Atualmente, o Partido Republicano é o porta-voz do conservadorismo social, econômico, politico e ideológico nos EUA, dando guarida a grupos mais radicais `a direita e extrema direita, os quais defendem a posse e porte irrestrito de armas, o estado minimo, o liberalism economico e fiscal, pautas de costumes conservadoras; enquanto os democratas advogam uma pauta mais liberal, tanto em relação aos costumes, passando pela economia e quanto ao papel do Estado enquanto instância para reduzir as desigualdades econômicas e sociais, a defesa do meio ambiente, a proteção dos trabalhadores, saúde publica e universal.

As ações do Governo Biden/Harris tem duas vertentes, em termos de politica: externa e interna, em ambas serão ações bem diferentes, radicalmente diferentes do periodo Trump.

Em relação `a politica externa, enquanto Trump buscou fortalecer os EUA no isolacionismo e uma crítica exacerbada aos organismos internacionais e aos pactos e acordos globais ou regionais que foram implementados nos 8 anos de governo Obama; Biden/Harris e o partido democrata já sinalizaram que os EUA buscarão fortalecer os organismos internacionais, ampliando a participação direta dos EUA nessas organizações; e apoiarão pactos e alianças regionais como o retorno dos EUA ao Acordo de Paris, que deverá ser uma das primeiras decisões do novo governo, a retorno das discussões quanto ao Bloco Transatlântico, entre os EUA, Canadá e a União Européia, como estratégia de fortalecimento de um mercado comum e uma forma de frear o expansionismo da China.

Neste particular, em relação `a China, o Governo Bidem terá menos retórica nacionalista, que de prático poucos ganhos trouxe aos EUA, mas sim uma visão e prática mais pragmáticas, com ganhos mútuos e, ao mesmo tempo, os EUA fortalecerão pactos regionais e acordos bilateriais com países asiáticos, como forma de reduzir a dependência daqueles países em relação `a China e também, o fortalecimento politico, estratégico, economico e militar na região.

O governo Biden/Harris implementará politicas bilateriais importantes com potências regionais e ou emergentes, tanto na Ásia quanto na África e Oriente médio, principalmente com a Índia, Indonésia, Coréia do Sul, Japão e Rússia.

Os grandes desafios estratégicos continuarão sendo o controle de armas de destruição em massa, a questão da nuclearização da Coréia do Norte, do Irã e também dos misseis balísticos intercontinentais, de longo e médio alcance.

A questão dos oceanos, a livre navegação e segurança das rotas marítimas também fazem parte tanto de uma estratégia de contenção da China e de outras possíveis potências militares quanto de fortalecimento do comércio internacional e de projeção de poder por parte dos EUA.

No aspecto de apoio e fortalecimento dos acordos internacionais cabe destaque `a OTAN, que durante o mandato de Trump foi duramente criticada, mas que para Biden reveste-se de uma forma de conter o expansionismo e intervencionismo Russo na Europa e Eurásia.

No que concerne ao programa espacial durante o Governo Biden estão previstas medidas e ações que possibilitem aos EUA a retomada da hegemonia espacial e para tanto é importante o fortalecimento e a modernização da NASA e de outros organismos estratégicos militares e espaciais.

A politica interna representa, talvez, o maior e mais imediato desafio para o governo Biden/Harris, a começar por uma postura mais pró-ativa e efetiva por parte do Governo Federal, em articulação com os governos estaduais e os governos locais para o combate mais efecaz e decisivo `a pandemia do coronavirus.

A meta imediata, já anunciada por Biden é de vacinar CEM MILHÕES de pessoas nos primeiros CEM DIAS DE GOVERNO, além de outras medidas emergenciais de apoio aos trabalhadores, aos desempregados, aos pequenos e médios empreendedores/empresários, aos governos locais e diversas categorias de trabalhadores. Para isso há poucos dias Biden anunciou um pacote de US$1,9 trilhão de dólares, sendo mais de US$400 bilhões de dólares para o enfrentamento da COVID-19, com repercussão direta na economia do país.

Além deste pacote emergencial, Biden comprometeu-se a, tão logo tomar posse encaminhará ao Congresso, que a partir de sua posse terá maiora democrata nas duas casas, já que o Partido Democrata conquistou as duas vagas que estavam em disputa, em segundo turno, no Estado da Geórgia, ficando o Senado com 50 senadores para cada partido e como a presidência do Senado nos EUA é exercida por quem é vice-presidente do País e, neste caso, o mesmo será presidido pela atual senadora e vice-presidente Eleita (do Partido Democrata) Kamala Harris.

O plano a ser encaminhado por Biden ao Congresso teve suas linhas gerais e principais aspectos aprovados pela convenção do partido democrata e abordará questões fundamentais , fiel `a sua plantaforma de campanha “Reconstruir melhor”.

Entre esses aspectos estao : um novo acordo voltado ao meio ambiente (Green New Deal), como a retirada e maior taxação sobre combustíveis fósseis; incentivos `as fontes de energia limpa, como solar, eólica e outras; combate `as mudancas climáticas, incluindo tanto medidas internas quanto apoio a medidas internacionais que visem combater as mudanças climáticas e reduzir a poluição do ar, dos solos e das águas, incluindo a poluição dos oceanos e o desmatamento das florestas tropicais ao redor do mundo.

A grande aposta do Governo Bidem será na Economia Verde, possibilitando a geração de mais de 20 milhões de empregos e investimentos de mais de US$17 trilhões de dólares.

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Outra proposta e frente de ação será no combate `a violencia interna e no racismo estrutural, incluindo a reforma das forças policiais como mecanismo de redução da violência policial, principalmente contra a população afrodescendente e imigrantes, estopim das varias manifestações de rua nos ultimos anos nos EUA.

Correlata a esta politica, faz parte tambem das propostas de Biden/Harris, a definição de uma politica imigratória mais racional e humana, como forma de evitar tantas injustiças e arbitrariedades ocorridas ultimamente.

Diferente de Trump que tentou, de todas as formas, acabar com o OBAMA CARE, Bidem propõe a ampliação da atuação na área da saúde que possa ser acessivel a todos, de forma universal.

As áreas de educação, da ciência e da tecnologia devem ganhar destaques no Governo Bidem como forma de melhorar a qualidade da educação americana, principalmente em relação a diversas países, cujo desempenho tem sido bem superior aos EUA.

Essas tres áreas representam a possibilidade também de melhorar a qualidade da mão-de-obra americana e aumento em produtividade para a economia e avançar em setores estratégicos como o militar, o espacial, da biotecnologia, da inteligencia artificial, da robótica e, principalmente em relação `a internet 5 G e as novas fronteiras do conhecimento.

Quando se fala em reconstrução, logo vem `a mente das pessoas, a reconstrução fisica e, neste aspecto, o plano de governo de Biden/Harris terá um amplo impacto na recuperação de obras de infraestrutura federal e de apoio aos Estado nesta mesma área, incluindo infraestrutura urbana.

Cabe destaque em termos econômicos a proposta de Biden para elevar o salário minimo federal dos atuais US$7,25 dólares por hora para US$15,00 dólares por hora, cabendo um esclarecimento de que o atual salário minimo federal está congelado desde 2009, ou seja, ao longo desses últimos 12 anos houve uma grande perda do poder aquisitivo dos trabalhadores que ganham apenas o salário minimo e isto tem empurrado milhões de trabalhadores para abaixo da linha de pobreza estabelecida pelo proprio governo federal.

Enquanto os republicanos e grupos conservadores criticam tal proposta, Biden justifica a mesma dizendo que isto vai reduzir um pouco a concentração de renda, as injustiças e iniquidade social e, ao mesmo tempo, vai colocar mais dinheiro diretamente nas mãos de milhões de familias que irão aquecer o mercado interno e estimular a economia.

Outra área importante, também inserida no contexto da saúde coletiva é a prevenção, tratamento e recuperação de dependentes químicos, além de um combate mais efetivo ao narco-tráfico e crime organizado, principalmente nas grandes e médias cidades.

Enfim, Joe Biden e Kamala Harris tomam posse em meio ao um país extremamente dividido, com ameças internas e também externas, mas com uma grande esperança tanto de pacificação internamente no país, quanto ao fortalecimento de laços de cooperação, de negociação como mecanismos de resolução pacífica dos conflitos, onde o papel dos organismos internacionais, como a ONU e seu Conselho de Segurança, a OEA e suas congêneres em outras regiões do planeta devem desempenhar papel fundamental.

Esta é mais uma diferença entre os governos de Trump, que satanizou os organismos internacionais e pautou a atuação internacional dos EUA pelo isolacionismo e um nacionalismo obsoleto e o governo Bidem, mais pautado pelo dialogo, fruto de sua experiência de 36 anos como senador, 12 dos quais como presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado americano e também seus 08 anos como vice presidente do Governo Obama, onde e quando desempenhou importantes papeis de negociador internacional representando os EUA.

Mesmo com tanto entusiasmo, a fé e a esperança em dias melhores para os EUA de Biden. Harris, do Partido Democrata e de mais de 80 milhões de eleitores, cabe ressaltar que tambem politicamente os EUA estao muito divididos neste momento. No Senado sao 50 senadores para cada partido; na Câmara Federal os democratas tem 224 deputados e os republicanos 221; quanto aos governadores, 27 são republicanos e 23 democratas; dos senadores estaduais os republicanos tem 1088 e os democratas 884 e dos deputados estaduais os democratas tem 2638 e os republicanos 2773. Isto demonstra que a disputa e luta politica tanto para a Câmara Federal cujas eleicoes ocorrem a cada dois anos e tambem as disputas para governadores , senadores estaduais e deputados estaduais vai ser uma verdadeira Guerra, de um lado os democratas tentando ampliar a maioria no senado e de outro os republicanos tentando retomar o controle da politica estadual em diversas estados como forma de retomarem a Casa Branca nas próximas eleicoes presidenciais, com Trump ou com alguem que possa derrotar os democratas.

Como estratégia de ampliar a representatividade de diversas grupos que o apoiaram e foram decisivos para a eleicao o Governo Biden/Harris é o que mais mulheres, negros, Negras, descendentes de imigrantes estarao em altos postos, no commando de cargos estrategicos neste governo que se inicia.

Por isso, mesmo em meio ao maior esquema de segurança jamais visto, que foi criado para garantir a posse de um presidente dos EUA, esta quarta feira pode representar o fim de uma era, mas não do trumpismo e o inico de um novo momento de esperança, fé e confiança no futuro dos EUA, com impactos tanto no contexto interno quanto internacional, incluindo o fato de que diversas governos e movimentos de dirfeita e de extrema direita, como de Bolsonaro no Brasil e em outros países, sentir-se-ão como órfãos a partir de agora!

Em um outro momento pretendo realizar uma reflexão/análise sobre o Governo Biden/Harris e suas relacoes com a América Latina, com destaque para as relacoes entre EUA e Brasil, já que o alinhamento automático, quase subserviência do Governo Bolsonaro a Trump não terá mais lugar. 

 

Juacy

JUACY DA SILVA, professor universitário, fundador, titular e aposentado UFMT, sociólogo, mestre em sociologia.

Email [email protected] Twitter@profjuacy

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