O melhor detergente é a luz do sol
ENOCK CAVALCANTI: PL do Estupro, do Abilio e Coronel Fernanda, é retorno da Inquisição
O melhor detergente é a luz do sol

- PL do Estupro, do Abilio e Coronel Fernanda, é retorno da Inquisição
Triste, para Mato Grosso, perceber que muitos da nossa representação política, em Brasília, contribuem para forjar este momento tétrico da política brasileira, que é a votação do PL dos Estupradores, no Congresso Nacional. De repente, tentam recriar, por aqui, os tribunais da Inquisição.
Com a proximidade das eleições, é mais do que evidente que a extrema direita tenta impor sua pauta de costumes e calar as reivindicações econômicas e sociais, esmagadas durante o governo de arrocho e de negacionismo de Bolsonaro.
Vivemos em um Estado em que o poder politico e empresarial flerta abertamente com as teses do retrocesso – e, por isso, não é à toa que o governador Mauro Mendes (UB) e seu vice, Otaviano Pivetta (Republicanos) continuam a se apresentar como bolsonaristas, mesmo depois do Ministério Público ter alinhado já tantos possíveis crimes e atrocidades que teriam sido propostas e praticadas durante o governo do inominável senhor Jair Bolsonaro (PL) e que se encontram agora sob inquérito e/ou julgamento nas mais diversas instâncias do Judiciário.
Notar que, mesmo no Poder Judiciário, lá estão os da extrema direita encapsulados. Quem viu magistrados e promotores perfilados no pórtico do Fórum de Cuiabá para defender as decisões e a honra do então juiz Sérgio Moro, da República de Curitiba, sabe do que estou falando.
Ana Cristina Rosa, jornalista, já escreveu antes de mim: “Um retrocesso civilizatório, uma violência contra as mulheres e uma demonstração explícita do perigo que é misturar política com fundamentalismo religioso. O projeto de lei que restringe e criminaliza o aborto legal em casos de estupro é isso tudo e muito mais. Sintetiza o desprezo de uma sociedade machista, racista e patriarcal que desrespeita o feminino.” (FSP, 17.6.24)
O surgimento desta proposta, todavia, neste ano de 2024, pretendendo fazer letra morta de direitos já garantidos desde a década de 1940, mostra que, como já previsto, a extrema direita quer regular o debate político, apelando para dogmas religiosos que há muitos séculos estão impregnados na psiquê de nosso povo. Sim, a religião mais uma vez instrumentalizada como ópio para o povo, como se a vida em abundância só se pudesse concretizar no além túmulo.
O que valem as mulheres? Não valem apenas para serem esposas, serem fêmeas e abrirem as pernas, na cama, sempre que o deputado e arquiteto bolsonarista mato-grossense Abílio Brunini desejar o prazer carnal – como defendeu o misógino Antero de Barros, sendo condenado por isso pelo juiz Jamilson Haddad.
Não, as mulheres brigam no Brasil, em todo mundo, para serem reconhecidas como senhoras de seus próprios corpos. Mas o senhor Abilio, que duelou com Antero no caso da repulsiva sexualização extrema de sua relação com a esposa, poucos dias depois aparece assinando e propondo, junto com a Coronel Fernanda e um grupo enorme de extremistas de direita, um projeto de Lei que ataca com selvageria justamente a expectativa de autonomia por que lutam, há tanto tempo, as mulheres brasileiras. Não sei se a esposa de Abilio, dona Samantha Irís, abraça o feminismo mas, como se alinha com o PL, é provável que não.
Abilio, que diz entender que sua esposa não existe apenas como uma vagina exposta e sempre à disposição de sua fome de macho, quer impedir, todavia, que ela e todas as meninas e mulheres brasileiras possam exercitar esse direito fundamental, para sua autonomia, de decidirem sobre seus próprios corpos, sobre o que resultará das conjunções carnais em que se envolverem. Essa possibilidade de serem completamente livres.
A discussão sobre a sexualidade é uma discussão sempre adiada ou atropelada em muitas das sociedades humanas, desde que o mundo é mundo. Os machos sempre se impõem. Eu sou homem, e lastimo as derrapadas a que fui levado pela formação autoritária que nos é imposta.
A centralidade da questão sexual foi sempre esmagada sob o peso dos dogmas religiosos e parece que não se avançou muito, nesses séculos todos, para nos livrarmos dos horrores que o Velho Testamento lançou sobre o homem, a mulher, os homossexuais e a convivência que são capazes de construir para a formação de nossas famílias, a partir de uma saudável utilização dos corpos com que a Natureza nos dotou. Sim, a Bíblia Sagrada pode também ser descrita como um repositório de muitas danações – e a Inquisição veio para demonstrar como isso pode doer e matar. Freud foi um dos que tentou explicar. Reich, outro. Mas quem é que presta atenção?!
Dessa forma, o esforço para limitar o acesso ao aborto legal e criminalizar as mulheres que desejam interromper a gestação, mesmo quando esta gestação resulta da brutalidade animalesca, dá a tônica da ousada tática da direita militante que consegue, assim, como que emparedar a esquerda e o movimento feminista em seu propósito. Uma reconstrução da Inquisição, é o que buscam nesse momento, em que tentam retroceder com a Legislação e fazer do aborto, mesmo no caso da violência extrema, que é o estupro, não um direito humano da pessoa que procura determinar as dinâmicas de seu próprio corpo e tenta preservar a sua dignidade pessoal, mas um crime hediondo pior que o próprio estupro.
Os movimentos feministas e de direitos humanos são arrastados, em nosso país, para uma posição em que quase não se fala mais em avançar no rumo da legalização do aborto, que já se conquistou em países como no Uruguai (2012), na Argentina (2021), no México (2021) e na Colômbia (2022). A luta, no Brasil, hoje, gira pra trás, volta a ser para garantir o pouco que já temos, preservar o que o Código Penal estabeleceu na década de 40, em vez de expandir esse direito fundamental à cidadania e à autonomia de meninas e mulheres.
Pior: a extrema direita vai mostrando que busca pautar as eleições municipais que se aproximam por uma disputa ideológica e religiosa, fazendo submergir a busca da expansão dos direitos econômicos das classes subalternizadas de nossa sociedade. A direita não quer discutir como uma prioridade, em Mato Grosso, por exemplo, a concentração de renda nas mãos dos barões do Agro.
Não quer priorizar a necessidade de incorporação de nosso território à uma nova economia que leve em conta o enfrentamento das mudanças climáticas, com uma justa distribuição da terra não só para os donos do capital, mas também para os trabalhadores e trabalhadoras rurais, em expressivo número jogados à marginalidade.
Discutir a Agroecologia, com diretivas que reduzam e mesmo eliminem o continuado envenenamento do território mato-grossense, como resultado do uso abusivo de agrotóxicos, certamente não é do interesse desses que, apesar dos muitos anos de alerta e de espantos, estão sempre a desmatar mais e mais, detonando rios e florestas, e inviabilizando a sobrevivência, entre nós, dos povos originários. Na pressa sovina de faturarem com a utilização, em suas lavouras, e com prejuízos inestimáveis para o meio ambiente, dos venenos produzidos por empresas multinacionais que confrontam o interesse nacional e preservacionista, deixando de pesquisar e implementar formas de plantio e de criação que agridam menos Gaia, a Terra, e os filhos da Terra.
O esforço da direita me parece que é para adiar e anular a discussão sobre a reforma urbana, sobre a democratização do acesso à Saúde e à Educação. Querem nos prender à discussão de uma pauta moral, sexual, acreditando que a influência religiosa favorecerá sua hegemonia sobre o comum do povo, nesse grande país católico e religioso que é o Brasil. E grave é perceber que muitos do povo se ajoelham diante deles, ao ouvir os brados por Nossa Senhora e pelo Divino Espírito Santo.
Parlamentares que se comportam como Abilio Brunini, como a Coronel Fernanda e demais bolsonaristas de Mato Grosso, despontam, portando, em minha acaliação como os novos inquisidores, torquemadas, personagens que tentam arrastar a todos nós, neste Estado, no rumo do retrocesso civilizatório. Os anunciados processos contra as garotas estupradas que se dispuserem a abortar, não se enganem, é uma tentativa de replicar, aqui e agora, aquelas fogueiras em que se eliminaram tantas mulheres nos tempos sombrios da Inquisição – em que a natural busca do prazer sexual por corpos femininos, por exemplo, era motivo para a tortura e o assassinato. Ah, castidade, ah, virgindade! – quantas patifarias cometidas em teu nome!
O fato é que a Câmara dos Deputados aprovou na quarta-feira, 12 de junho, o regime de urgência para o PL 1904/2024, apelidado de “PL dos Estupradores”. Dessa forma, o texto pode ser votado pelo plenário sem passar pelas comissões. Um grupo de 33 deputados assinou o texto (relação completa, logo abaixo). Segundo a proposta, mulheres que façam aborto após 22 semanas de gestação terão pena aplicada conforme o delito de homicídio, ou seja, reclusão de seis a 20 anos. Assim, mulheres que cometerem aborto, mesmo em caso de estupros, poderão ter pena maior do que os próprios estupradores. De acordo com art. 213 do Código Penal, a pena para estupro é de seis a dez anos de reclusão. Em casos que resulta lesão corporal do crime ou quando o estupro tem vítima menor de 18 anos ou maior de 14 anos, a pena aumenta para oito a 12 anos de reclusão. Quando a vítima é menor de 14 anos, a lei estabelece reclusão de oito a 15 anos.
Confira todos os autores do PL:
- Sóstenes Cavalcante – PL/RJ (Autor Principal)
- Evair Vieira de Melo – PP/ES
- Delegado Paulo Bilynskyj – PL/SP
- Gilvan da Federal – PL/ES
- Filipe Martins – PL/TO
- Luiz Ovando – PP/MS
- Bibo Nunes – PL/RS
- Mario Frias – PL/SP
- Delegado Palumbo – MDB/SP
- Ely Santos – Republicanos/SP
- Simone Marquetto – MDB/SP
- Cristiane Lopes – União Brasil/RO
- Renilce Nicodemos – MDB/PA
- Abilio Brunini – PL/MT
- Franciane Bayer – Republicanos/RS
- Carla Zambelli – PL/SP
- Frederico – PRD/MG
- Greyce Elias – Avante/MG
- Delegado Ramagem – PL/RJ
- Bia Kicis – PL/DF
- Dayany Bittencourt – União Brasil/CE
- Lêda Borges – PSDB/GO
- Junio Amaral – PL/MG
- Coronel Fernanda – PL/MT
- Pastor Eurico – PL/PE
- Capitão Alden – PL/BA
- Cezinha de Madureira – PSD/SP
- Eduardo Bolsonaro – PL/SP
- Pezenti – MDB/SC
- Julia Zanatta – PL/SC
- Nikolas Ferreira – PL/MG
- Eli Borges – PL/TO
- Fred Linhares – Republicanos/DF
Muitas mulheres, e muitos outros brasileiros, desde que o PL dos Estupradores surgiu, já foram às ruas para protestar, espernear, reagir. Certamente esse é um bom caminho para confrontar um Congresso onde o oportunismo se impôs e onde as bancadas de Oposição tentam subverter o projeto de sociedade que a maioria da população brasileira aprovou nas urnas eleitorais de 2022.
Enock Cavalcanti, 71, jornalista, é editor do blogue PAGINA DO ENOCK, editado a partir de Cuiabá, MT, desde o ano de 2009.

Coronel Fernanda e Abilio


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